Descobertas em Vênus ajudam a entender mudanças climáticas na Terra

Atmosfera venusiana sugere novos limites à vida como conhecemos; novos estudos envolvendo o planeta podem ajudar a compreender fenômenos diversos

Crédito: NASA

Crédito: NASA

Segundo planeta mais próximo do Sol, Vênus é semelhante à Terra em tamanho e estrutura, o que, ao longo do tempo, levou a especulações sobre a existência de algum tipo de vida por lá. Contudo, desde 1967, quando Carl Sagan sugeriu que as partes mais elevadas de Vênus, a 50 km da superfície, teriam condições favoráveis à vida, não se via tanto entusiasmo relacionado ao planeta como agora.

Isso porque pesquisadores da Universidade de Cardiff, no Reino Unido anunciaram, em um artigo publicado em setembro de 2020 na revista Nature Astronomy, ter encontrado a presença de fosfina (PH3) na atmosfera de Vênus. A molécula de gás seria a primeira evidência de que pode ser possível existir vida naquele planeta.

A descoberta gerou entusiasmo porque a fosfina pode ser resultado de processos biológicos gerados por fungos e bactérias, como acontece na Terra.  Por isso, a molécula é vista como um marcador biológico ou bioassinatura.

Desenvolvido por uma equipe com 19 pesquisadores, o estudo afirma que a presença da fosfina não é explicada por nenhum processo identificado na atmosfera de Vênus, embora a molécula já tenha sido encontrada também em Júpiter e Saturno.

A região da detecção, feita por dois telescópios, corresponde a uma nuvem densa carregada de dióxido de carbono (CO2) e ácido sulfúrico (H2SO4), que se formou devido a mudanças nas condições climáticas daquele planeta.

De acordo com a biomédica Ana Carolina Souza Ramos de Carvalho, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) que estuda a adaptação de microrganismos em Marte, por ser muito inóspito, poucas sondas foram capazes de mapear Vênus. No entanto, os limites para a vida sempre são questionados quando se estuda seres vivos que se adaptam a condições extremas. “A vida pode ter migrado para as nuvens, se alojado na atmosfera e sobrevivido naquele ambiente”, comenta. 

Nesse sentido, as mudanças no clima de Vênus também podem ser analisadas com a aplicação das leis da física e da química, preceitos universais constantes no estudo da vida, seja na Terra ou em outro planeta.

A lua e Vênus, num fenômeno astronômico conhecido como appulse, que ocorre quando dois objetos celestes aparecem próximos. Créditos: Alex Dzierba

A lua e Vênus, num fenômeno astronômico conhecido como appulse, que ocorre quando dois objetos celestes aparecem próximos. Créditos: Alex Dzierba

Simulação da Akatsuki, da Agência Japonesa de Exploração Aeroespacial (JAXA), nave que estuda as causas das disparidades entre Vênus e Terra para fornecer respostas sobre a formação da Terra e ajudar a entender as mudanças climáticas.

Créditos: NASA/JPL-Caltech

Créditos: NASA/JPL-Caltech

Simulação da Akatsuki, da Agência Japonesa de Exploração Aeroespacial (JAXA), nave que estuda as causas das disparidades entre Vênus e Terra para fornecer respostas sobre a formação da Terra e ajudar a entender as mudanças climáticas.

Créditos: NASA/JPL-Caltech

Créditos: NASA/JPL-Caltech

“O futuro da Terra, em condições climáticas, pode ser tornar-se como Vênus, num efeito estufa sem retorno. Na astrobiologia, aprendemos que a vida se adapta, mas a grande pergunta é: até que ponto ela é adaptável?”

Ana Carolina de Carvalho (USP)

Parte II | Um planeta referencial

A 108 milhões de quilômetros do Sol, Vênus é uma referência para estudos sobre mudanças climáticas, visto que um aumento da atividade solar há milhões de anos é apontado por cientistas como causa da evaporação dos oceanos por lá. 

A hipótese foi levantada em um estudo feito na Universidade de Cornell em 2016, que considerou condições climáticas favoráveis à vida naquele planeta, como a presença de água há pelo menos 715 milhões de anos.

Segundo o estudo, o aquecimento do planeta evaporou esses oceanos, deixando a água suspensa na atmosfera, o que agravou o efeito estufa. Agregada a isso, a alta presença de CO2 fez de Vênus um dos planetas mais inóspitos do sistema solar, com uma temperatura média superior a de Mercúrio, astro mais próximo do Sol.

Vênus também possui alta atividade vulcânica. Animação: Michael Lentz

Vênus também possui alta atividade vulcânica. Animação: Michael Lentz

O meteorologista Luiz Felippe Gozzo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), explica que esse aquecimento é fruto de processos em sequência. “O principal determinante do aquecimento foi o aumento do dióxido de carbono na atmosfera, mas esse aumento veio em consequência da evaporação dos oceanos, que teve a ver com mudanças na energia recebida do Sol.”

Nesse cenário, as previsões climáticas aproximam as condições de Vênus e Terra. “Hoje, a astrofísica sabe que o Sol deve tornar-se cada vez mais energético e mais quente. Por isso, são grandes as chances de ocorrer na Terra o mesmo que houve em Vênus, mas apenas ao longo dos próximos cinco bilhões de anos”, comenta o pesquisador.

O físico Stephen Hawking também já fez um alerta usando Vênus como referencial. "Estamos em um ponto crítico no qual o aquecimento global vai se tornar irreversível", disse em 2017, comentando o fato de podermos transformar a Terra em Vênus, com uma temperatura de 250ºC e chuva de ácido sulfúrico.

Considerando que a ação humana agrava o quadro climático natural da Terra, as consequências das alterações do clima podem ser de fato devastadoras em um período nem tão distante. Não por acaso, a última reunião do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) alertou para a morosidade no tratamento das mudanças climáticas, que pode afetar o ciclo natural dos ecossistemas.

PARTE III | O clima da Terra

Uma pesquisa realizada no Observatório de Física Meteorológica de Davos, do Instituto Federal de Ciência Aquática e Tecnologia (Eawag) da Suíça, em 2017, buscou entender a influência da radiação solar nas variações climáticas da Terra. O estudo em climatologia investigou como o Sol pode impactar as temperaturas, sem desconsiderar a ação humana no agravamento do efeito estufa. 

Na pesquisa, a atividade solar foi 'reconstruída' num período de 500 anos (1600-2100). Apesar do período de análise ser relativamente curto na escala astronômica, a estimativa é que o Sol possa reduzir ligeiramente sua radiação, gerando uma diminuição de meio grau na temperatura da Terra.

Visão simulada por computador da superfície de Vênus. Crédito: NASA/JPL

Visão simulada por computador da superfície de Vênus. Crédito: NASA/JPL

No gráfico, a linha vermelha mostra o aumento da temperatura da Terra, enquanto a linha amarela evidencia a presença de irradiação solar em wtt. As linhas mais finas indicam a variação anual e as mais grossas, a tendência em um período de 11 anos. Na Terra, o aumento da temperatura não é consequência do aumento da radiação solar dos últimos 140 anos. Fonte: Nasa Climate Change

No gráfico, a linha vermelha mostra o aumento da temperatura da Terra, enquanto a linha amarela evidencia a presença de irradiação solar em wtt. As linhas mais finas indicam a variação anual e as mais grossas, a tendência em um período de 11 anos. Na Terra, o aumento da temperatura não é consequência do aumento da radiação solar dos últimos 140 anos. Fonte: Nasa Climate Change

Apesar disso, o Sol não é o principal responsável pela variação da temperatura em nosso planeta nos últimos anos, mas a queima de combustíveis fósseis, como carvão e petróleo, que liberam os chamados gases do efeito estufa (GEE). Segundo a Agência Espacial Norte-Americana (Nasa), a presença de CO2 na atmosfera terrestre aumentou em 47% desde a Revolução Industrial.

Dados como esse permitem afirmar que as mudanças climáticas na Terra se agravaram nos últimos anos sobretudo devido à ação humana, com a exploração de ecossistemas e a degradação de recursos naturais, embora fenômenos naturais ocorridos no sistema solar também tenham interferido no clima dos planetas.

“A atividade solar ao longo de bilhões de anos pode quebrar o equilíbrio que existe em um planeta, levando-o a mudanças climáticas extremas”

Luiz Felippe Gozzo (Unesp)

Simulação computacional da vista do hemisfério norte de Vênus. Imagem: NASA/JPL

Simulação computacional da vista do hemisfério norte de Vênus. Imagem: NASA/JPL

PARTE IV | Semelhantes mas diferentes

Embora a atmosfera de Vênus não ofereça cenários muito variados, a descoberta da fosfina vai permitir que novos estudos se concentrem na atmosfera do planeta para identificar os processos que podem estar produzindo fosfina por lá. Contudo, o professor Gozzo afirma que previsões climáticas envolvendo os próximos mil ou dez mil anos não devem traçar um paralelo exato da Terra com o ponto em que Vênus está hoje.

Mesmo que as semelhanças com Vênus possam gerar especulações e hipóteses sobre as condições futuras na Terra, em escala universal, quanto mais distante do presente, mais aumentam as incertezas, e um quadro mais certeiro só seria possível em cenários baseados no que já se conhece.

Também nesse sentido, o físico Rodolfo Langhi, que desenvolve projetos e pesquisas em educação em astronomia na Faculdade de Ciências da Unesp em Bauru (SP), afirma que conhecer processos que ocorrem em lugares como as galáxias em formação, mesmo a 100 milhões de anos-luz daqui, contribui para se compreender melhor nossa própria existência. 

Afinal, conhecer o universo significa conhecer melhor a nós mesmos e ao planeta em que vivemos.

EXTRA | Como ir mais além?

No mundo da ciência, as descobertas são fruto de investimentos em pesquisas e processos meticulosos de metodologia e análise de resultados. Quando se estuda uma área que não permite a presença in loco por condições ambientais extremas, a análise remota de substâncias e cenários é uma alternativa.

Rica em CO2, a atmosfera venusiana é densa, com temperaturas que variam entre 40º a 60ºC, impedindo a luz de atingir a superfície do planeta. Desde os anos 1960, hipóteses de vida em Vênus não puderam ser comprovadas devido a essa camada densa e ácida que reveste o planeta.

De acordo Langhi, a pressão atmosférica de Vênus é tão alta que 'esmaga' as sondas, como se fossem latinhas de refrigerante, o que faz com que o estudo de sua atmosfera seja feito por espectroscopia, método que permite detectar a presença de elementos químicos no espaço separando os feixes de luz em cores, devido à emissão de energia eletromagnética. "Como cada elemento possui um conjunto de linhas espectrais, que funcionam como um código de barras, telescópios com espectroscópios permitem aos cientistas separar essas linhas e identificar o elemento químico ali presente", explica.

No Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o professor Ivo Milton Raimundo Junior empregou justamente esse método de análise espectral em Vênus. A técnica, denominada Espectroscopia de Emissão Óptica em Plasma Induzido por Laser (Libs), foi usada por ele em uma pesquisa realizada na Universidade da Carolina do Sul (EUA) para analisar a atmosfera de Vênus e as fontes hidrotermais no fundo dos oceanos, regiões hostis e de difícil acesso.

O método consiste na emissão de um feixe de luz em laser na amostra. Os átomos da matéria ficam energizados e vaporizam em pequena quantidade, em processos de atomização e excitação, emitindo um espectro específico que permite identificar os elementos. 

“O fundo do oceano e atmosfera de Vênus têm em comum a alta pressão, mas são completamente diferentes. A técnica pode ser aplicada em áreas como arte e arqueologia, mas condições experimentais devem ser estudadas para que sejam obtidos resultados representativos e confiáveis”, esclarece o especialista.

Simulação de Rover (veículo operado remotamente) na superfície de Marte, equipado com um aparelho de Libs identificando elementos nas rochas marcianas. Imagem: NASA/JPL-Caltech/LANL/J.-L. Lacour

Simulação de Rover (veículo operado remotamente) na superfície de Marte, equipado com um aparelho de Libs identificando elementos nas rochas marcianas. Imagem: NASA/JPL-Caltech/LANL/J.-L. Lacour

Processo completo de mudanças climáticas ocorridas em Vênus. Animação: Michael Lentz

Processo completo de mudanças climáticas ocorridas em Vênus. Animação: Michael Lentz

Reportagem produzida durante o I Programa de Mentoria para Jovens Jornalistas da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência)