Os impactos da falta do território tradicional na saúde mental dos indígenas
Estudos sugerem que a saída das terras originais gera ou intensifica sofrimentos psíquicos nessas comunidades
Na cultura Guarani, um homem indígena precisa oferecer um roçado para a mulher com quem vai se casar. A falta de uma terra para o cultivo próprio impossibilita a passagem para a vida adulta. O problema: hoje, a população Guarani Kaiowá ocupa apenas 29,03% dos territórios reconhecidos oficialmente como tradicionais, aponta o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, publicado em setembro deste ano pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) -- os dados se referem a 2019. Em um trecho do documento, a antropóloga Lúcia Helena Rangel lembra da fala de um senhor Guarani Kaiowá chamado Hamilton Lopes, que encontrou num acampamento de beira de estrada: “O que faz um homem sem terra para plantar? Bebe”.
Os impactos psicossociais relacionados à perda de territórios tradicionais podem contribuir para o sofrimento psíquico da população indígena. Em uma revisão sistemática de nove estudos conduzida por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foram delineados os fatores mais associados ao suicídio entre indígenas. O reassentamento e a realocação das terras estavam entre eles.
Segundo a investigação, as maiores taxas de suicídio indígena nas regiões Centro-Oeste e Norte no Brasil — as que possuem maior número de terras desses povos — podem ser explicadas, entre outras coisas, pela urbanização e por tensões decorrentes de interesses políticos e econômicos. Em 2019, os registros de invasões, explorações ilegais e danos ao patrimônio de territórios indígenas mais do que dobraram, segundo dados do relatório do Cimi. O salto foi de 109 casos em 2018 para 256 em 2019. O documento também revela um aumento de 31,6% de suicídios da população indígena, a partir de dados parciais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
Indígenas fazem manifestação em frente ao Supremo Tribunal Federal, na véspera do julgamento da ação que pede a suspensão da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 09 de dezembro de 2008. Em decisão histórica no dia 19 de março de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o julgamento da petição que questionava a demarcação da terra. Foto: José Cruz/Agência Brasil
Indígenas fazem manifestação em frente ao Supremo Tribunal Federal, na véspera do julgamento da ação que pede a suspensão da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 09 de dezembro de 2008. Em decisão histórica no dia 19 de março de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o julgamento da petição que questionava a demarcação da terra. Foto: José Cruz/Agência Brasil
O aprimoramento na coleta e análise de dados pela Sesai explica parte desse achado. Mas na opinião de Rangel, as taxas de suicídio, intensificadas desde 2014, têm muito a ver com o crescimento das tensões e com as invasões e desmatamentos em terras indígenas. Retrocessos nas políticas públicas e negação de direitos básicos também são fatores importantes.
Naquela revisão sistemática da UFMG, homens solteiros entre 15 e 24 anos integram o grupo que mais se mata dentro da população indígena. Já o artigo escrito por Rangel amplia a faixa etária para 14 a 29 anos. “Temos indícios que esse jovem vai ficando sem expectativas para o futuro”, analisa a antropóloga.
Um exemplo desse sentimento de desesperança pode ser entendido naquele caso dos Guarani Kaiowá, que são impedidos de fazer a transição para a vida adulta pela falta da terra. A limitação leva os jovens a trabalharem de forma intensa em lavouras de terceiros, muitas vezes com o corte de cana. No fim de um dia exaustivo e descolado de suas tradições, eles recorrem, muitas vezes, ao consumo abusivo de álcool. “Para eles, esse é o novo modelo de homem adulto. A falta de um lugar para o roçado não é apenas uma frustração, é um sofrimento de âmbito existencial”, sugere.
PARTE II | O sofrimento psíquico causado por processos de migração
O direito ao território está garantido pela Constituição Brasileira. Mas a realidade é outra. Durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, nenhuma terra indígena foi demarcada. Na gestão anterior, de Michel Temer, a única tentativa de demarcação sofreu suspensão por decisão judicial. Segundo o relatório do Cimi, 41,29% das terras tradicionais são reivindicadas pelas comunidades indígenas sem nenhuma providência administrativa para sua regularização. Para o pesquisador Renan Albuquerque, da Universidade Federal do Amazonas, quando as pessoas indígenas são impedidas de seguir as suas próprias organizações sociais, entram no que ele chama de sofrimento ético-político.
Albuquerque criou o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam). Ele investiga desde 2013 o sofrimento psíquico dos grupos Sataré-Mawé e Hixkaryana, que se veem forçados a migrar para espaços urbanos. De acordo com o pesquisador, o trânsito acontece em busca de saúde, emprego e educação, porque a estrutura oferecida pelo poder público para as terras indígenas desses povos não garante os seus direitos.
A saída de seu território tradicional pode intensificar ou gerar sofrimentos pelas incertezas que rodeiam o retorno para a terra indígena, o racismo sofrido no polo urbano, a dificuldade de comunicação e as relações negativas entre a cultura da cidade e a indígena. Na pesquisa “Indígenas Sateré-Mawé/AM e Hixkaryana/AM em sofrimento mental e ético-político”, Albuquerque conclui que os encontros na cidade tendem a promover sofrimento ético-político pela exclusão social. “Os indígenas têm suas próprias características, a sua cosmologia, o parentesco, o compadrio, a afinidade e a hierarquia do clã. Para estarem bem, eles precisam fortalecer esses aspectos”, explica. O estudo foi realizado em conjunto com o Núcleo de Pesquisa da Dialética Exclusão-Inclusão Social (Nexin), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e publicado em abril de 2020 ano na Revista Interthesis.
“O que faz um homem sem terra para plantar? Bebe”
Hamilton Lopes, Guarani Kaiowá
Nita Tuxá sentiu na pele os impactos da falta de um território tradicional. O seu povo Tuxá, localizado na Bahia, teve terras produtivas e pastoris inundadas pelo processo de construção da usina hidrelétrica Luiz Gonzaga. Entre 1986 a 1994, 211 famílias dessa comunidade foram conduzidas para reassentamentos em três diferentes cidades. A mudança culminou em insegurança alimentar e conflitos com não indígenas.
“Isso causou agravos psíquicos, depressão dos anciões, perda da relação com a terra e com a biodiversidade e falta de perspectiva de futuro”, destaca Nita, que mudou para o vilarejo com apenas 1 ano de idade. “Nós somos um povo da memória. Toda a nossa subjetividade ficou no passado. Ela tinha lugar naquela terra que não era mais nossa”, arremata.
Hoje, Nita é psicóloga e professora no Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima. Ele estuda justamente a Psicologia no contexto indígena. Na época em que nasceu, o registro do nome indígena não era permitido porque se considerava que iria contra a Lei 6.015/13, que proíbe o registro de crianças com nomes que as exponha ao ridículo. Por isso, Nita foi registrada com o nome Edilaise Vieira. Em 2012, no entanto, foi aprovada uma resolução do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público que enfatiza que nomes indígenas não se enquadram na aplicação da lei.
A professora sugere que a saúde mental dos povos indígenas sofre com o que chama de o “não lugar”. Isto é, a falta de uma referência para a própria identidade. Principalmente nas regiões urbanas, há uma ambivalência entre momentos em que o indígena sente que pode performar sua identidade tradicional e aqueles em que é privado disso. Ora, muitas de suas características podem virar alvo de discriminação e violência.
Nita Tuxá explica que a transmissão cultural indígena é muito baseada na oralidade e na experiência das comunidades: “Para ter saúde mental, é preciso de um território para expressar sua dança, sua música, sua organização social, sua espiritualidade, suas tecnologias, sua relação com a natureza, sua cosmologia”.
PARTE III | A produção de conhecimento sobre a saúde mental indígena
Segundo o último censo do Instituto de Brasileiro Geografia e Estatística (IBGE), os povos indígenas no país representam 305 etnias diferentes. “A atuação da psicologia precisa considerar as singularidades de cada povo, a sua concepção de mundo, a sua estrutura de organização social e política. Tudo isso interfere em como os sofrimentos são compreendidos por aquelas pessoas”, explica Nita Tuxá.
As pesquisas que pretendem investigar a saúde mental desses povos, portanto, não podem ignorar as suas pluralidades. E há uma carência de estudos sobre o bem-estar e mesmo sobre doenças psiquiátricas entre diferentes populações indígenas, como aponta aquela revisão de estudos da UFMG.
Em 2014, Nita Tuxá acreditou que, por ser indígena e psicóloga, teria legitimidade para lidar com o bem-estar mental do povo Yanomami. Na prática, ela conta que o seu conhecimento da cultura indígena não a preparou por completo, uma vez que vinha de outro povo. A sua formação acadêmica também não cumpria todas as lacunas.
Mesmo depois de tentar explicar o seu papel na comunidade, Nita lembra que um homem perguntou se ela poderia fazer xabori, palavra que descreve práticas do xamanismo ou para se referir a um xamã na língua yanomami. “Ele entendeu que eu ‘tirava espírito ruim’, porque quem faz isso é o xabori”, conta.
Experiências como essa renderam a sua pesquisa de mestrado “Nem injeção, nem xabori: reflexão sobre trabalhos de saúde mental em contextos indígenas em Roraima”. Ela indica que a Psicologia, se pretende compreender melhor e beneficiar os indígenas, não pode seguir à risca modelos voltados originalmente para não indígenas. Por outro lado, reforça que os cuidados indígenas tradicionais também não conseguem lidar com todas as aflições desses povos, principalmente diante da perda de território. Pesquisas focadas nesses aspectos são tão necessárias quanto raras.
Albuquerque aponta a necessidade de mais diálogo entre os profissionais de saúde e os indígenas: “O conhecimento pautado na ancestralidade e na espiritualidade indígena não substitui a biomedicina, e vice-versa. É preciso ter respeito pela cultura indígena para promover o bem viver”.