Da insônia ao abuso de álcool: os prejuízos da pandemia na saúde mental

Com mais de oito meses de medidas de contenção contra a disseminação do novo coronavírus, cresce a preocupação com o adoecimento mental

Sintomas de ansiedade e depressão podem ser comuns nesse momento de pandemia. Foto: Pexels

Sintomas de ansiedade e depressão podem ser comuns nesse momento de pandemia. Foto: Pexels

A pandemia do novo coronavírus prejudicou a saúde mental da população brasileira, e mundial. Renata Franca se inclui nessa lista. Foi durante a quarentena contra a Covid-19 que a empresária de 44 anos desenvolveu sintomas depressivos. “Tem dias que mal levanto da cama, em um misto de fraqueza e tristeza. Andar na rua tem sido difícil, minhas mãos ficam suando, coração dispara, boca seca. Quando posso até evito”, relata.

Dados de um estudo divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no início de outubro alertam que 93% dos países-membros tiveram os atendimentos de saúde mental prejudicados ou interrompidos por completo durante esse período. Dos 130 países que participaram do levantamento, mais de 60% relataram prejuízos nos cuidados aos mais vulneráveis, como crianças, adolescentes e idosos.

Perceber que algo não vai bem pode não ser tão simples. Os sinais se dividem em diferentes áreas, como mudanças no apetite, nas horas e na qualidade do sono, no consumo de bebidas alcoólicas, além de sintomas de ansiedade e depressão. Até 50% da população exposta a uma epidemia pode vir a sofrer alguma manifestação psicopatológica se nenhuma mudança for feita, segundo a cartilha da Fiocruz sobre a Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia da Covid-19. Nem tudo pode ser considerado doença e alguns sinais tendem a ser mais comuns:

  • Medo de adoecer e morrer, ou perder alguém que amamos;
  • Receio de perder o emprego ou de não poder trabalhar;
  • Ser excluído socialmente por estar de alguma forma associado à doença;
  • Medo de transmitir o vírus a outras pessoas;
  • Sentir-se impotente diante dos acontecimentos;
  • Sentir-se irritado, angustiado e triste.

Jonalva Paranã, psicóloga e mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), destaca que as pessoas passaram por um episódio de desterritorialização - foram retiradas dos seus territórios físicos e emocionais. "Tem coisas que vão acontecer e estão acontecendo nesse processo que não tem como ser diferente. Começamos a ver repercussões emocionais mistas e formas diferentes de lidar com essa realidade. É necessário identificar as mudanças que tragam prejuízo na qualidade de vida.”

Durante a pandemia, Renata Franca, empresária de 44 anos, teve de lidar, além da própria doença, com a perda da avó para a Covid-19. Associada às mudanças do período, o sono e a qualidade de vida da empresária foram comprometidos. Foto: Arquivo pessoal

Durante a pandemia, Renata Franca, empresária de 44 anos, teve de lidar, além da própria doença, com a perda da avó para a Covid-19. Associada às mudanças do período, o sono e a qualidade de vida da empresária foram comprometidos. Foto: Arquivo pessoal

PARTE II | Sono interrompido

As incertezas do momento e o estado constante de hipervigilância estão prejudicando o sono das pessoas. Levantamento feito pelo Instituto do Sono, de São Paulo, mostra que 55,6% dos mais de 1,7 mil entrevistados alegaram piora na qualidade do sono nos últimos meses. 

Acompanhar o velório da avó pela internet, vítima da Covid-19, além de lidar com as consequências da doença no próprio corpo, atrapalhou o descanso da Renata Franca, empresária. “Durmo muito mal. Normalmente vou dormir cerca de duas horas da manhã forçando o sono, e acordo por volta das seis. Tem sido péssimo”, relata. 

Para Fernando Mariano, médico especialista na área, embora exista predisposição genética para os prejuízos do sono, há fatores que acabam perpetuando o transtorno. “As pessoas ficam pensando que nunca mais vão dormir adequadamente. Abusam o celular, ficam muito alertas. Esse ciclo cria uma insônia crônica”, explica Mariano, que atua no Instituto Paranaense de Otorrinolaringologia. 

“É preciso ter um ritual de relaxamento, ter rotina, horário para acordar e dormir, fazer atividades relaxantes antes de ir para cama, como meditação e oração. O simples fato de o celular estar no quarto já atrapalha”

Fernando Mariano, médico no Instituto Paranaense de Otorrinolaringologia

PARTE III | Álcool em excesso

Na tentativa de aplacar o sono, ou apenas amenizar o cansaço emocional da pandemia, muitos recorreram às bebidas alcoólicas. A pesquisa Uso de Álcool e Covid-19 desenvolvida pela OPAS com 12 mil entrevistados de 33 países da América Latina e Caribe (30,8% do Brasil), entre maio e junho de 2020, mostrou aumento de 35% no chamado 'Beber Pesado Episódico', quando o indivíduo ingere uma quantidade significativa de bebida alcoólica em uma única ocasião, entre pessoas de 30 a 39 anos. No mês de maio, a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD) também apontou um crescimento de 38% nas vendas de bebidas em distribuidoras e de 27% em supermercados desde os decretos de isolamento.

Já a ConVid Pesquisa de Comportamento, coordenada pela Fiocruz, indicou que o consumo de álcool está associado à frequência com que a pessoa se sentiu triste ou deprimida. Quanto maior a tristeza, maior o consumo. "Há uma representação cultural de que o álcool deve nos acompanhar em momentos de tristeza, depressão e crise. Então, sim, pode ser considerada uma forma de escape das vulnerabilidades do contexto, mas cada caso precisa ser avaliado", explica a psicóloga. 

Os riscos são de dependência, aumento na chance de demência, alteração da memória, acidentes domésticos e piora na apneia do sono, segundo Mariano. 

PARTE IV | Montanha-russa alimentar

Para aplacar os sentimentos de ansiedade e nervosismo diante de tantas mudanças em 2020, a estudante Júlia Vasconcelos, de 23 anos, adotou o hábito pouco saudável de comer para “preencher o vazio”. “Eu estava comendo muito, porque passava muito tempo sem ter o que fazer.” A estudante só percebeu o impacto dessa escolha alimentar quando viu algumas roupas apertarem e, desde então, prioriza alimentos mais saudáveis. “Estou tentando me alimentar melhor, até porque gosto de cozinhar. Opto por colocar mais verduras no prato e não pular mais as refeições”.

A decisão de Júlia foi compartilhada por outros brasileiros. Dados do estudo NutriNet Brasil, desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo, mostram que a população brasileira começou a pandemia ingerindo mais alimentos in natura. O estudo — que, por meio de uma plataforma online, coletou dados de 10 mil brasileiros entre os meses de janeiro e fevereiro (antes da pandemia) e em maio (durante a pandemia) — viu que 44,6% haviam incluído hortaliças, frutas e leguminosas na rotina alimentar. Em um levantamento anterior à pandemia, apenas 40,2% das pessoas haviam tido a mesma resposta.

Para Maria Alvim, nutricionista e pesquisadora do NutriNet, a principal hipótese é que as pessoas que tiveram o privilégio de cumprir o isolamento social em casa podem ter tido uma reaproximação com a cozinha. “Outra especulação é que as pessoas estão mais preocupadas com a saúde. ‘Eu quero que meu sistema imune esteja funcionando para não pegar o coronavírus. Vou me alimentar de forma mais saudável para ficar protegida’”, diz.

Com o passar dos meses, o cenário alimentar mudou para todo o país. No levantamento ‘Convid Pesquisa de Comportamento’, da Fiocruz, os pesquisadores identificaram uma redução no consumo de verduras e legumes em cinco dias, ou mais, por semana, passando de 37% para 33%. A pesquisa também apontou que 48,8% das mulheres estão consumindo mais chocolates e doces em dois ou mais dias por semana, o que representa um aumento de 7% em relação a antes desse período. O levantamento foi feito virtualmente durante os meses de abril e maio com 400 participantes. 

A psicóloga Jonalva Paranã lembra que a piora na alimentação pode também estar relacionada com a política de governo e a distribuição de riquezas no país. Com o desemprego durante a pandemia, muitos estão sobrevivendo com o valor do auxílio emergencial, entre R$ 300 a R$ 600.

“Vemos famílias muito ricas que tiveram e estão tendo conforto para atravessar a pandemia com hábitos mais saudáveis. Sabemos que as frutas são mais caras que ovos, salsicha, presunto. Alguns alimentos ultraprocessados alimentam mais pessoas dependendo da quantidade e do valor em detrimento dos mais saudáveis. As pessoas estão precisando escolher o que comer, porque a renda mudou”. 

PARTE V | Sinais de alerta: o que fazer?

Seja o sono que tenha sido prejudicado ou as escolhas não tão saudáveis que saíram do controle, essas mudanças precisam ser revistas. “É preciso ter um ritual de relaxamento, ter rotina, horário para acordar e dormir, fazer atividades relaxantes antes de ir para cama, como meditação e oração. O simples fato de o celular estar no quarto já atrapalha”, destaca Mariano, médico especialista, sobre como melhorar o sono. 

Mesmo com as interferências do coletivo, cada pessoa terá uma experiência do processo de adoecimento mental. "A questão é como esse sofrimento surge, por quanto tempo e quais os riscos que ele promove. Vemos nas redes sociais as receitas prontas de o que fazer. Mas tem coisas que vão dar certo para algumas pessoas e para outras não. É muito complexo e é preciso observar", destaca Jonalva Paranã, psicóloga.

Júlia Vasconcellos, estudante de 23 anos, percebeu que a alimentação, durante a pandemia, piorou em termos de qualidade, visto que ela tentava comer para “preencher o vazio”. Foto: Arquivo pessoal

Júlia Vasconcellos, estudante de 23 anos, percebeu que a alimentação, durante a pandemia, piorou em termos de qualidade, visto que ela tentava comer para “preencher o vazio”. Foto: Arquivo pessoal

Reportagem produzida durante o I Programa de Mentoria para Jovens Jornalistas da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência)