Isolados dentro das metrópoles: os desafios de quem vive com pouca internet nas grandes cidades

Pesquisas investigam como a limitação ao acesso impacta o futuro da educação, prejudica o exercício da cidadania e estimula hábitos a favor da desinformação

Até junho de 2021, a Central Única de Favelas (CUFA) pretende entregar 500 mil chips com internet em todas as periferias do Brasil. Um dos primeiros chegou no final de outubro à dona de casa Jailma Guimarães, moradora da Favela da Matinha, em João Pessoa, na Paraíba. Ela diz que o chip servirá para que a filha de oito anos possa estudar. “Antes a gente não tinha internet, eu ia na escola pegar apostilas para ela não perder os assuntos. Era tudo no papel. Eu tentava ensinar do meu jeito”, conta.

Jailma faz parte de um grupo que ficou ‘isolado’ digitalmente durante a pandemia. Apesar da desigualdade de acesso não ser uma novidade, a migração dos serviços governamentais de educação e saúde para as telas prejudicou quem não pode pagar por uma boa conexão. A limitação do acesso impacta o futuro da educação, prejudica o exercício da cidadania e estimula hábitos a favor da desinformação. 

Um dos últimos relatórios a alertar para a desigualdade de acesso à educação à distância (EAD) foi publicado em agosto pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), após análise do primeiro semestre do ano. O documento mostrou que os estudantes do ensino fundamental são os que têm menos acesso à internet banda larga ou 3G/4G em casa (cerca de 16% deles) para atividades remotas de ensino-aprendizagem. Para que os estudantes tivessem condições de assistir às aulas, no mínimo, seria necessário a disponibilização de tablets/celulares para 1,8 milhão deles e medidas complementares para outros que nem sequer dispõem de sinal nos locais onde vivem.

Uma recomendação do relatório é que as medidas de acesso ao EAD também pensem em como capacitar os estudantes para interagir na rede, prática conhecida por letramento digital. Mesmo sem saber o que significa o termo, Jailma reconhece que a falta de instrução lhe impede de fazer mais coisas na internet. “Eu só uso o WhatsApp e Facebook. Quando eu preciso fazer outra coisa, peço ajuda a minha comadre Suely [líder da CUFA na comunidade]”, conta. 

Outra pesquisa, publicada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) alerta para o impacto da pandemia na educação a nível mundial. Para os economistas Eric A. Hanushek e Ludger Woessmann, os estudantes que ficam totalmente sem aulas neste período, sobretudo os de baixa renda, podem ganhar cerca de três vezes menos em seus empregos no futuro.

Pensando em mitigar os impactos da pausa nas aulas, a maioria dos Projetos de Lei (PL) propostos na Câmara dos Deputados e que têm relação com o acesso a internet focam no tema da educação. Pelo menos 40 propostas foram apresentadas desde o início do ano. 

A dona de casa Jailma  Guimarães, com o chip recebido da CUFA, por meio da empresa Alô Social. Foto: arquivo pessoal.

A dona de casa Jailma  Guimarães, com o chip recebido da CUFA, por meio da empresa Alô Social. Foto: arquivo pessoal.

No geral, os PLs  prevêem a distribuição gratuita de tablets e celulares, 3G e acesso gratuito a conteúdo educacional, com diferentes escopos. As menções à telefonia móvel ou Serviço Móvel Pessoal (SMP) também são maiores em comparação à banda larga fixa. Para o fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.Rec), André Ramiro, o SMP é insuficiente. "A internet fixa é o modelo ideal. O consumidor não fica sem internet. Você contrata uma velocidade e a conexão não é interrompida, independente do uso. Acontece que a banda larga é um privilégio de apenas uma fração da população, da qual não fazem parte as populações de baixa renda."

Poucos projetos encontrados no site da Câmara prometem disponibilizar computadores ou celulares para que os estudantes acessem a rede. Mesmo o celular sendo o segundo dispositivo mais presente nos lares da periferia (84%), segundo dados a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018 (Pnad), do IBGE, a ausência dele deixou muitas famílias desassistidas pelos programas de inclusão. “Um dos principais desafios que nós encontramos para levar internet a todas as mulheres vulneráveis que mapeamos é que dentre elas identificamos um número considerável de mães que não tinham nem ao menos um smartphone para acessar à internet. Por isso, elas não puderam ser inseridas no projeto nesse momento”, lamenta a coordenadora da CUFA na Paraíba, Kalyne Lima.

“Eu só uso o WhatsApp e Facebook. Quando eu preciso fazer outra coisa, peço ajuda a minha comadre Suely"

Jailma Guimarães, dona de casa

PARTE II | Cidadania limitada

Apesar de garantirem a inclusão no ecossistema digital, a maioria das propostas governamentais não dão conta de promover a mesma liberdade de navegação disponível a quem pode pagar caro por isso. 

A maioria das famílias de baixa renda usa a internet móvel. Se os dados acabam, com eles se vai o acesso a serviços básicos. Uma pessoa com internet limitada, por exemplo, é forçada a quebrar a quarentena para sacar dinheiro, participar de consultas médicas e fazer compras, serviços que podem ser feitos em casa por quem tem uma conexão veloz e aberta. 

Em abril deste ano, o IP.Rec publicou uma nota institucional alertando sobre as possíveis consequências de serviços essenciais se tornarem ainda mais digitais, em um país com milhões de desconectados. O instituto recomendou que a conexão ininterrupta deveria ser garantida para que as pessoas pudessem acessar os serviços sem restrições. Sete meses depois, nada mudou. “Foi protocolado requerimento junto à Anatel nesse sentido, mas o órgão negou. Isto é um reflexo de uma política que prioriza o modelo de negócio dos provedores de conexão e ainda deixa em segundo plano o usuário final da internet, mesmo em um dos momentos mais críticos da história, quando o acesso à informação essenciais sobre saúde são uma prioridade absoluta”, comenta André Ramiro.

Os pesquisadores do IP.Rec chegaram a recomendar que o zero rating — a prática de prover dados ilimitados e sem custo para certos aplicativos ou programas de navegação — fosse utilizado para os serviços essenciais do governo, como a consulta por vídeo chamada, aplicada em cidades como o Recife, por meio do aplicativo Atende em Casa. Hoje, no entanto, o zero rating é monopolizado pelas operadoras de telefonia. 

“A inclusão digital no Brasil depende, em grande medida do alcance dos grandes provedores de conexão (como Claro, Vivo, TIM etc), as quais são guiadas pela lógica do lucro. É necessário que a política de inclusão digital seja capilarizada para outros prestadores de serviço de conexão, como os pequenos provedores, atores centrais que vêm levando Internet de qualidade aos lugares mais longínquos do país. Isso cria um maior número de redes administradas por uma diversidade de pequenas e médias empresas, contribuindo para a redução da brecha digital no Brasil”, explica o pesquisador. 

PARTE III | Passe livre para a desinformação

O modelo de zero rating mais popular em algumas operadoras e projetos fornece acesso ao WhatsApp, Facebook, Twitter e outras redes sociais mesmo após o fim do plano de dados. “Isto é um problema. As pessoas passam a ver a internet como sinônimo de redes sociais”, explica a professora da Pós-graduação em Educação Matemática e Tecnológica do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Ana Beatriz. 

Segundo relatório anual do Instituto Reuters, o Facebook e o WhatsApp seguem sendo os principais canais de consumo de notícias no Brasil. Quando o zero rating está aplicado, as pessoas podem receber notícias por meio desses aplicativos, mas não podem clicar no link ou verificar a informação em outro lugar. Não é que a prática culpada pela desinformação, mas a acentua, defendem os pesquisadores. 

Desde 2016, o WhatsApp tem sido apontado como principal vetor de desinformação nas redes. No último ano, um levantamento da ONG Avaaz, indica que o aplicativo de conversas foi o canal chave para a distribuição de boatos sobre a covid-19. “As pessoas estão cada vez mais confiando só no que está ali no corpo da mensagem. Ler as fontes e buscar a sua origem é uma coisa importantíssima nesse processo de letramento digital. A gente não pode produzir limitações nesse sentido”, aponta Ana Beatriz. 

“Seria seguro dizer que a internet vivenciada pela população de baixa renda se resume, em grande medida, a serviços como redes sociais e, em alguma medida, buscas no Google”, complementa o pesquisador do IP.Rec. “Mas a rede é infinitamente maior e aponta para uma diversidades de serviços que é difícil acessar a partir dessas circunstâncias.” 

Segundo Ana Beatriz, os usuários precisam saber que existem sítios oficiais onde podem encontrar informação de forma ativa. “Quando você abre o acesso indiscriminado só para o WhatsApp, o Facebook e Instagram as pessoas ficam só nisso. Ali as informações são ranqueadas segundo o algorítmo de uma só empresa. Você pensa que está fazendo escolhas, mas não está", afirma a pesquisadora. "Não podemos formar pessoas que só acessem conteúdos de redes sociais, precisamos pensar em processos informativos. Acho que esse é o princípio.”

Reportagem produzida durante o I Programa de Mentoria para Jovens Jornalistas da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência)