Cinzas deixadas pelos incêndios no Pantanal ameaçam ribeirinhos
Apenas em 2020, mais de um quarto do bioma foi consumido pelas chamas
A temporada histórica de queimadas que tem marcado o Pantanal brasileiro este ano já devastou mais de 4 milhões de hectares do bioma. Além dos danos imediatos à fauna e à flora, cientistas têm alertado para as consequências futuras, que devem trazer graves impactos socioambientais para a região. Pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) estão investigando os efeitos que as queimadas podem causar sobre a qualidade da água do Rio Cuiabá, considerado um dos principais do estado e intimamente ligado ao bioma pantaneiro. Ao que tudo indica, apesar do cenário já calamitante, o pior ainda pode estar por vir.
De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de janeiro até a primeira semana de novembro de 2020, foram registrados 21.590 focos de calor no bioma que se estende entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O número representa um crescimento de 129% em relação ao mesmo período do ano anterior. A vida aquática não deve passar ilesa à devastação recorde. Com mais de 980 km de comprimento, o Rio Cuiabá já vem sofrendo há anos com as mudanças climáticas e a ação humana. O que os pesquisadores acreditam agora é que as cinzas deixadas pelas queimadas serão carregadas para o rio com o início das chuvas em grande volume, o que deve gerar redução da quantidade de oxigênio na água, afetando, entre outras questões, a quantidade de peixes.
“O Rio Cuiabá é um rio muito importante para o Pantanal, tendo a parte alta que passa próximo à capital e indo até a região pantaneira, na direção sul do estado. É uma das bacias que mais teve áreas incendiadas nessa temporada. Por isso, estamos estudando a qualidade da água. Em razão do material que será carregado para o rio, estimamos que vai haver redução de oxigênio, com a água tendendo a ficar muito mais túrgida que o normal. O grupo de comunidades aquáticas que nós temos no estudo são microrganismos fitoplâncton e exoplâncton, que são base alimentar para os peixes. Nós buscamos entender se essa modificação na qualidade da água vai afetar esses microrganismos aquáticos”, explica a professora Daniela Maimoni, docente e pesquisadora associada do Mestrado em Recursos Hídricos da UFMT e uma das integrantes do projeto.
Caso a hipótese investigada pelos pesquisadores seja confirmada, centenas de vidas podem ser afetadas a partir do próximo ano. É o caso de Valdenete Rodrigues, de 52 anos. Moradora da Comunidade de Pescadores Bonsucesso, no município de Várzea Grande (região metropolitana de Cuiabá), ela conta que se tornou pescadora ainda muito jovem, acompanhando a mãe, que também exercia o ofício para sustentar seus seis filhos. Viu ao longo dos anos a quantidade de peixes diminuir muito. Para ela, não há possibilidade de as próximas gerações tirarem seu sustento do rio, como ela e seus antepassados já conseguiram um dia.
“A situação já vem ruim há pelo menos uns dez anos. Por causa de intervenções na natureza, como a construção da barragem do Manso. Se piorar mais ainda, quem depender exclusivamente da pesca para sobreviver daqui em diante, eu não sei não... Acho que não vai ter como criar seus filhos, netos, essa geração que vem vindo. É muito triste. Cresci e sustentei meus filhos com pesca, do mesmo jeito que minha mãe. Eu mesma não consigo mais trabalhar somente com isso. Faço limpeza às vezes nas casas, para ganhar um trocadinho e assim seguir vivendo”, conta.
A condição adversa e que vem sendo agravada ano a ano tem causado prejuízos também para os restaurantes, considerados atrativos turísticos da vila Bonsucesso. Lecir Aparecida da Silva administra há 11 anos a Peixaria Tarumã, que fica bem à margem do rio Cuiabá. Há cinco, começou a comprar peixe de outro estado para manter o estoque. “Aqui na vila nós somos 11 restaurantes. Os pescadores daqui não conseguem nos abastecer mais. Há cerca de 20 anos, era muito mais fácil. O peixe era barato porque tinha muito. Hoje, pedindo em Santarém, no Pará, pagando o frete para que seja entregue aqui, é mais barato que comprar em Mato Grosso. Pensar que a situação pode piorar é muito triste”, relata.
PARTE II | Impactos socioambientais
Além de Bonsucesso, às margens do Rio Cuiabá há diferentes comunidades ribeirinhas que mantém um vínculo de constante aprendizado sobre a relação com a natureza, e principalmente com o rio, a partir do que é passado de geração para geração. Conforme Verone Cristina da Silva, doutora em antropologia social, impactos ambientais como os gerados pelos fortes incêndios deste ano costumam causar também forte impacto cultural sobre essas comunidades. A pesquisadora, que dedica parte de seus estudos à compreensão dos modos de conhecimento dos ribeirinhos, explica também que, nesses casos, mesmo quem não lida diretamente com a pesca tem a vida afetada.
“Episódios de mudanças impactantes no meio ambiente, como o vivido com as intensas queimadas deste ano, interferem significativamente na cultura. O rio tem uma contribuição não apenas em termos de paisagem, mas no consumo de água, no ciclo das chuvas, alimentação, cultivo, sendo muito importante para além das comunidades ribeirinhas. Mesmo as pessoas que não mantêm uma relação direta com o rio dependem dele. Essa relação não é pautada somente na atividade econômica ou na alimentação. Esse rio é uma via de deslocamento de população. Há um fluxo de pessoas, saberes e experiências. Todas essas dimensões são pressionadas de alguma maneira por restrições que vêm pelos impactos ambientais”.
Assim como Valdenete, Dulce Pinheiro da Silva, de 50 anos, também foi criada em uma família de pescadores. Ela conta que a cada ano aumenta a incerteza em relação ao futuro da comunidade de Bonsucesso. As queimadas deste ano causaram um medo ainda maior. Em setembro, no auge da estiagem, o fogo chegou a se aproximar da pequena vila, como nunca antes havia ocorrido.
“Era tanto fogo do outro lado do rio que a gente ficou com medo dele atravessar. Nunca tinha visto desse jeito. Cresci aqui em Bonsucesso. Meu pai era pescador de rede de arrasto. Ele criou todos os filhos na pesca, dando de comer e conseguindo dinheiro com a atividade. Crescemos pescando e comendo peixe. Ele também fazia e vendia rapadura. Então era rapadura e peixe. Quase todo mundo aqui era pescador antes, mas agora todo mundo está caçando outro serviço. A gente tem família e tem que dar de comer para os filhos. De uns dez anos para cá já não tem mais a quantidade de peixe que havia. Mas esse ano foi de uma vez. Não estamos conseguindo quase nada.”
"De uns dez anos para cá já não tem mais a quantidade de peixe que havia. Mas esse ano foi de uma vez. Não estamos conseguindo quase nada"
Dulce Pinheiro da Silva
PARTE III | Ações do governo ainda são incertas
Estudos como o desenvolvido pelos pesquisadores da UFMT, que avalia o impacto das cinzas levadas para o rio, são fundamentais na elaboração de políticas públicas que visem aplacar os efeitos da devastação ambiental e evitar que situações tão graves voltem a acontecer. Cientistas apontam que episódios de estiagem como o vivido este ano pela a maior planície interna inundável do mundo, infelizmente, devem ser cada vez mais frequentes daqui em diante. Para a professora Maimoni, conter as consequências da nova condição climática passa necessariamente pela articulação de órgãos executivos de todas as esferas do poder, em conjunto com a participação popular.
Em contato com o Governo do Estado de Mato Grosso, por meio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema-MT), a redação foi informada que já há monitoramento, mas não foi explicado o que está sendo feito para tentar conter a situação. Em meados de outubro, a Secretaria chegou a emitir uma nota em que orientava a população a não consumir os peixes que apareceram mortos após as primeiras chuvas. À época, o Governo informou que o excesso de cinzas poderia alterar o pH, fazendo com que a amônia resultante da decomposição da matéria orgânica fique na sua forma mais tóxica. Além disso, a concentração de sais, como o sódio, também pode ser alterada, influenciando o equilíbrio osmótico da água, sendo todas essas alterações danosas e até letais para os peixes.
PARTE IV | Raiz e identidade
Apesar dos prognósticos pouco positivos, Valdenete, Lecir e Dulce, ribeirinhas ouvidas pela reportagem, compartilham dos sentimentos de pertencimento e gratidão ao rio. Assim como outros moradores, nenhuma delas pretende deixar a pequena vila de pescadores. A esperança é que a situação seja um dia contornada e que o rio, que carrega embarcações e histórias, ainda possa oferecer alimento e sustento para as próximas gerações. “Ah, daqui eu não saio. Só depois de morrer. Minha casa é aqui e eu amo esse lugar. É a história da minha vida, da minha família. É onde eu nasci e onde eu quero ficar. É uma relação de muita paixão e gratidão”, relata Dulce.